domingo, 31 de maio de 2009

Hoje me dei conta de que já saí de casa: meus livros que ficaram lá, na casa dos meus pais, a pretexto de faxina foram rearrumados - o mais triste - por ordem de tamanho.

sexta-feira, 29 de maio de 2009

Epistolar II

20 de junho de 1963

Antonio,

Recebi sua carta há 3 dias. Fiquei nesse tempo juntando as poucas palavras que conheço pra escrever-lhe. Na verdade esta é uma daquelas situações nas quais não sei como proceder. Meço palavras. Fico tão comovida ainda que assustada com sua carta. Quanta beleza na sua poesia, quanta entrega. Sua sinceridade merece a minha entre estas linhas. Já fazem alguns meses que fui embora do Brasil, não tive oportunidade de despedir-me de qualquer pessoa. Aquele por quem mais meu coração doeu de não haver despedida foi você. Tinha trazido na bagagem os nossos poucos beijos que guardei na memória. Não vou disfarçar a alegria, o frisson e o coração adolescentemente disparando quando reconheci sua caligrafia. Revivi aquelas breves noites em que nos encontramos.

Me ocorre que uma vez li que pessoas que escrevem as palavras suspensas em relação às linhas do papel são pessoas sonhadoras, sem os pés no chão. Vejo que estou escrevendo assim agora, quando comecei a rascunhar esta carta. Sempre faço rascunhos antes de uma carta, assim como penso tanto antes do que há para dizer; não sou tão sonhadora assim, ou seja, talvez eu só esteja num estado flutuante.
Ia te escrever qualquer coisa, tentar desprender o improviso da minha ordem, tornar a big band um bebop. É que me lembro que tenho o mar inteiro pra te contar. Ou todo um continente. Importa é que eu queria te falar infinitamente, já que o que eu tenho pra escrever não cabe em poucas palavras. Acontece que também não cabe em muitas. Aliás, o que eu tenho pra te dizer não cabe. Não é hora, momento nem maneira de dizer assim, por carta. Se eu te olhasse nos olhos agora, também não saberia dizer, certeza. “Dizer o quê?” aposto que você está se perguntando em ânsia com seus olhos carinhosos que não esqueci e que até já desenhei só pra ver se eu lembrava dos detalhes. Em alguma outra carta te mando o desenho, como retribuição por você ter olhado tão lindamente pra mim com a sua leve ternura com ar de bossanova. Mas então, não cabe dizer. E se um dia couber, se ainda houver isso em mim que eu queria dizer e se também houver alguma forma de ser dito, eu digo. E estamos combinados.
Tinha começado esse parágrafo anterior pensando naquela vez em que você me ligou – a única – e parecia que você ia me contar outras coisas, mas você só perguntou como foi meu dia, eu comecei respondendo que estava com dor de garganta – porque era a coisa menos importante e eu tenho esse padrão mental de rememorar as coisas e ordená-las de forma crescente – só que você foi atencioso em relação a isso e por algum motivo onde você estava não era ideal pra conversar (acho que você só queria ouvir minha voz) e eu acabei não contando mais nada, nem ouvindo de você. Muito assunto se perdeu ali, inclusive de mais importante. Ia te contar que naquele dia eu tinha arrumado uma gaveta com meus papéis, umas poesias velhas, uns contos em parágrafos desordenados, pra ver se arrumando meu interior externado arrumava também minha mente. E que nesse dia tinham surgido planos de viajar sozinha, de largar as exatas e viver de literatura (loucura passageira) e que no meio desses planos percebi que o único pensamento em paz na minha mente era você. Mas logo desligamos o telefone, eu terminei de colocar os papéis na gaveta um tantinho mais feliz de você ter ligado.
Só você pra me fazer perder a objetividade, Antônio, olha quanto eu já escrevi. Vim até esta linha só pra dizer que adorei sua carta de presente de aniversário, mesmo que chegando atrasada. Tanto calor, cuidado, entrega, e sinceridade nas tuas palavras, frases, pontos e vírgulas, todos cálidos. Também senti dó quando você chegou no final, também me senti como se te visse sem saber quando te reencontraria.

De fato, não sei se vamos nos reencontrar. Não sei se volto mais, Antônio. E se voltar, e quando voltar, não sei se esse sentimento que fez essa tua carta chegar até aqui ainda existirá. Você é tão sonhador, livre, aberto, inteligente, estou certa de que muitas outras te farão companhia e motivos para sambas e desgostos e bebedeiras e prazeres. Me forço a reconhecer – ou lhe impor – esta sua natureza de muitos amores (mesmo que eu não saiba de nenhum, nunca conversamos sobre isso), pra eu sofrer menos com essa história que estava começando. Desculpe a mudança brusca de tom, a delicadeza por vezes dá lugar à proteção. Ainda bem que você não pode me ver agora.

Vai lá, vive tuas poesias, seus sonhos, seus caminhos em arte. Vive umas canções por mim, bem sei como se sofre pra fazer uma das boas. Visita lá o Império, que eu gostava tanto de ir, já que você ainda se lembrou até da minha escola de samba.

Saudades, Antônio, de você, daqueles dias e de tudo ao redor. Guardo pra sempre em minha pele essas memórias, que devem ser tudo que terei de ti. Olha, não te cobro resposta a esta carta, mas se você resolver responder, antes vá à praia, toma uma cerveja gelada por mim e me conta como foi.
Guardo-te com profundidade e delicadeza junto com o gosto de um amor que já transbordava os dedos pensando em começar.

Bons caminhos.

Um terno abraço,
Jude