terça-feira, 6 de novembro de 2007

O terceiro

Ela ouvia Vinicius de Moraes e amava. Mas sem tanta dor como nas canções.
Enquanto isso lembrava do terceiro encontro com o seu poeta.

Finalmente eles ficaram a sós na sala. No continuaram sentados no sofá conversando baixinho. A luz de dois abajures deixava a sala em tons de terra e amarelos envelhecidos, sem aquele manjadíssimo azulado da tela do computador que os unia e separava friamente. Ela estava mais calma do que imaginara estar. Serena. Sem pressa. Num momento de silêncio ela o olha com ternura e pega sua mão. Ele calmamente olha. Não se assusta. Mas Claire sabe que ele ainda não a quer. Seu amor é tão grande que precisa tocá-lo. Não ardentemente, mas ternamente, como quem contempla, como quem cuida de orquídeas.
Leva a mão dele até sua face. Acaricia-a. Segura aquela mão entre as suas pousando-a em seu colo e desce os olhos até ela, olha as unhas mais belas e masculinas que já viu. Os dedos e as poucas veias que a juventude permite aparecer. Admira aquele pedaço que contém tanto do seu amor. Beija aquela mão esquerda e não olha para o seu rosto. Não agora. Fecha os olhos e respira com calma, o momento é pleno dentro do ser de Claire. Ainda segurando a mão dele, a mão direita de Claire alcança aquele rosto suave, suavemente, deleitosamente. O olhar do poeta derramava melancolia, poesia dentro dela. Toca-lhe a maçã do rosto com as costas da mão, deslizando, sentindo a barba por fazer. Vira a mão devagar e passa os dedos delicadamente sobre o canto da sobrancelha, depois o polegar. Desce os dedos passando pelos curtos e largos caracóis castanhos atrás da orelha e por entre os dedos lembra do cheiro em seu pescoço, em sua pele, que havia sentido nos breves abraços. Retorna com o polegar aos lábios. Imagina-os encostando-se em seus próprios lábios tão sensíveis. Qual seria o gosto, a temperatura de seu hálito? Ele se deixa admirar. Não a olha com assombro, nem demonstra qualquer emoção. Uma deidade. Nem ela o quer agora. Quer exatamente o que tem, satisfaz-se com a presença física, com a inexistência das palavras escritas sem ensaio. Sem a tela do computador. O toque. As suas mãos nele. Suas mãos. Nele.

terça-feira, 2 de outubro de 2007

As dores de Alice

Nada mudou realmente. Ando desconfiando que o preço que meus sonhos cobram são pagos em horas tediosas. Salas de aula, palavras esterilmente proferidas, pessoas-espelhos. E tudo o que eu posso fazer continua sendo olhar as nuvens passando na janela ou palavras passando no papel. Quando não posso, conto-me histórias para passar o tempo.

(Luiz me disse que os sonhos estão realmente caros).

A dor de cabeça lhe enfraquecia. Lembrava-se das últimas dores; a que veio antes da menstruação, a que veio com o frio, o calor, o clima seco, o cansaço, a desilusão. Não se importava com a dor, simplesmente atribuía-lhes razão de ser. Alice fumou um cigarro, deitou na beirada da cama com a cabeça pendendo. Viu a sujeira debaixo do armário. Pensou em aranhas e em seu medo delas. Pareceu-lhe que o medo era uma outra espécie de dor de cabeça.
Descartou mais um pensamento insípido enquanto de cabeça para baixo sentia seu crânio latejando e seus olhos relutantemente abertos ajudavam os dedos a escolher qualquer canção no seu mp4. Imaginou cenas no mesmo tom das músicas e acabou escolhendo qualquer disco que lhe remetesse a outros tempos. Foi levada para noites passadas que não viveu com velas, almofadas, chão de madeira, nenhuma mobília, verão, tristeza, um violão melancólico e a calma de tempos sem computador.
Ouvindo The Reminder a voz da cantora que soava límpida e chatinha a faz sentir-se bem, quase aconchegada no lugar imaginário que acabara de criar. Sorri, aumenta o volume, levanta-se rapidamente e antes que a cabeça pare de rodar e seus joelhos recuperem a força, dança imperceptivelmente até a cozinha e toma um comprimido.

domingo, 30 de setembro de 2007

Aparece Claire

Claire se descobre sozinha na tarde de domingo. Depois de conversar sobre amores desfeitos, amores em tempo, percebe-se no meio de conversas de futuros amantes e entre amantes imaginários. Suspira e exala fumaça, com cheiro de flor de cerejeira. Hoje ela não faz sentido. O sentido nela se faz. Incorpora ciúmes alheios e confunde-os com seus próprios. Hoje está para as dores de amor de qualquer um, inclusive as suas.
Da varanda, reflete entre as mentes sua e dele enquanto aguarda a demorada e breve correspondência; ela tão bem conhece os pensamentos que habitam na mente do seu artista. Poeta. Tão subjetivo, tão comunicativo através dos espaços, risadas e migalhas. E responde-lhe sem que ele tenha se manifestado abertamente:

“Não quero perdê-lo, mas se o for, quero que me perca antes, mesmo que nunca nos tenhamos tido. Bloqueio-o de mim por paredes de várias espécies de matéria e pensamento, desfaço-me de seus apegos, de sua arte e de seus versos e de meus sonhos de nós, mas não o perderei sem sequer poder tê-lo tido. Jamais.
O desvão que se abre em mim neste momento é obscuro e possui um trampolim. Ao final irei conquistá-lo; homem, artista da minha própria arte. Ao final irei esquecê-lo, serei mulher, serei minha artista. Serei só minha?
Entre sentimentos torvelinhos reato-me ao texto que corre entre nós dois e preparo-me para o inevitável, para o não poder ser de. Há, aí, em sua companhia, outros artistas, tão diferentes do que sou, tão próximos. Pior; há aí mesmo outra artista. E com o que nem eu ouso chamar de arte, em vão me expresso, me desabafo entre pixels e o nada, choro e salvo minhas lágrimas pitorescas em bitmap, para não perder o pesar.”

sábado, 29 de setembro de 2007

Na prateleira mais baixa do armário do meio descubro versos. Meus. Ou mais ou menos meus. Digamos que já tenham sido meus ou passado por mim. Não sei a quem pertencem agora. Se a eu que já fui, a eu que ainda sou ou a eu que totalmente diferente sou.
Tinha então 16 anos. Descobri que gostava do meu jeito de ser então. E que já vivi a maior parte do que eu queria ter vivido quando daqueles dias. Não me preocupo se isso é compreensível a outros olhos. Ou se eu dissesse olhando para meus olhos de então que tudo ia acontecer, que aqueles amores estavam por vir, que aquele vento correria fresco nos meus cabelos de hoje e que as sementes de árvores que eu nem sabia quais era brotariam em mim e revelariam sua essência. Sim, eu reli minhas sementes hoje, encontrei suas cascas no fundo do armário do meio.
Descobri coisas a meu respeito que já havia esquecido, ou desonestamente tentado deixar de lado. Um quê de solitária, de viajante e exploradora que não sei se tenho mais. Daqueles dias, ainda não conquistei a sonhada liberdade de ir onde e quando. As amarras que me atam, no entanto, estão enlaçadas com outros apegos, desta vez meus próprios apegos. Vejo neste instante que tenho minhas próprias amarras, que elas me doem, mas me mantêm. Onde? Hoje não vou porque não quero; acho que não quero ir. Antes não podia, agora não sei se quero ir neste instante. Acho só que preciso de mais bagagem, talvez proteção. Talvez menos bagagem. É. Não vou agora porque preciso de menos bagagem.

Então revejo versos e desejos antigos. E surge uma antiga necessidade de escrever como se eu tivesse 16 anos e fome de botar pra fora.

segunda-feira, 8 de janeiro de 2007

pequenas fugas

Saí de casa devagar, como se devagar pudesse fazer as ruas e casas criarem caminhos que eu não conhecesse nas redondezas. A névoa que não deixava ver o final das ruas me fez pensar que se talvez entrasse numa delas até me perder no meio da bruma eu seria levada à Avalon.
Sigo caminhando, não aparecem caronas; sem problemas, quero mesmo andar até cansar, até me perder. Mas não passo do centro da cidade. Procuro então me perder entre livros, em outras vidas, verdadeiras ou não. Nada de poesia hoje, nada de História, Filosofia ou Dalai-Lama. Quero ser absorvida, sugada para outro universo, qualquer coisa distante e diferente de mim. Para não voltar até que o tempo passe ou que o subconsciente resolva o que em mim complica a vida.